Vou escrever sobre o serumano.
De vez em quando trabalho como corretor de redações. Corretor é quem separa o certo do errado. É um trabalho desumano, despedaça a gente. “Serumano” é uma palavra frequente nas redações. Uma construção frequente é "Desde os primórdios, o serumano…" Em algum momento, porque sempre foram muitos serumanos, eu parei de me comover em sua presença. Para economizar energia na tarefa repetitiva, o cérebro executa a função e logo passa à próxima frase. É como se acostumar com a existência do ar. A gente apenas respira. Até o amor, depois de um tempo… Serumanos. No contexto das correções, certo ou errado são as únicas escolhas. Mas guardei a informação. Acho bonita a palavra, meio tosca assim, como nós, homens das cavernas com unhas sujas de terra.
Por alguns meses, Leo frequentou a faculdade. Era meu colega. Sua primeira prova de Linguística I ficou famosa. Uma cópia xerox em preto e branco circulou entre a gente. A prova corrigida estava inteira comentada pelo professor. Sua nota não foi 8,0 ou 3,5. Ele tirou "0,75: irresistivelmente poético". Os dois-pontos entre a nota e o comentário me lembram "Grande sertão: veredas". Eu li a cópia da prova inteira mais de uma vez. E depois recebi, do próprio Leo, acesso ao original. Parecia um diálogo entre dois mundos, suas respostas em caneta azul e, em caneta vermelha, os comentários do professor, que se mostrava tão impressionado quanto eu. Tudo errado. Poemas, desenhos, pequenos contos, aos quais o professor respondia "belo", "vou levar essa comigo", "hahahaha", "esclarecedor", "minha mãe era assim, é uma boa lembrança". Aquilo mudou minha vida. Fiquei com inveja. Na minha prova, comentário nenhum. Correta e previsível, cheia de argumentos, apenas o esperado. Ajudei o Leo a estudar para a prova seguinte. Tive a impressão de que ele entendia boa parte da matéria. Tentei aprender algo no seu modo errado de explicar as coisas. Ele nem tentou fazer a segunda prova, desistiu do curso antes do fim do semestre. Isso foi antes das redes sociais. A gente era mais desconectado. Perdi o contato.
Depois de ler dois ou três “serumanos”, naquele átimo entre o espanto inicial e a posterior indiferença, foi que guardei a palavra. Alguém deveria escrevê-la em outro contexto, sem a necessidade de acertar. É como regar as flores mais estranhas (ou cultivar o amor antes de ele existir).
Eu queria ter sido o Leo com mais frequência na vida. Leo é nome de animal forte e poderoso. Sua prova levou o professor a viver, por um instante, entre a prova anterior e a seguinte. Em vez de convencer, o Leo seduzia. O professor-corretor teve que responder, sair de seu estado maquinal, reconhecer a presença dessa outra inteligência. Como deve ter sido difícil, para o professor, voltar a corrigir provas… A razão olhando para o que não é ela é um estado místico.
Ser corretor, se o tempo todo, embota a sensibilidade da gente.
(O professor, de quem tenho muitas e boas lembranças, é o Luiz Tatit.)
Em 2013, durante as gigantescas manifestações que hoje interpretamos como o início de uma grande confusão, eu publiquei no Facebook uma foto da bandeira do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte. Há lá um pincel, entre a foice e o martelo. Trabalhadores do campo, da cidade e da caneta. Meu ponto era a caneta, não a Coreia do Norte. Fui expulso do Facebook. Minha conta sumiu (outras contas também sumiram), por causa da bandeira ou pelos comentários errados que eu fazia sobre a gente que se manifestava (nós). Não sei de fato o motivo. Tenho orgulho dessa expulsão e saudade da rua.
A memória desse episódio é pretexto para indicar a newsletter da camarada trabalhadora da caneta A ficcionista. Ela escreve coisas inteligentes e inspiradoras por lá. Visite e siga ;)
Trabalhadores, uni-vos.
Se vamos ser destruídos por uma bomba atômica, que ela nos encontre realizando atividades humanas sensatas — orando, trabalhando, ensinando, lendo, ouvindo música, dando banho nas crianças, jogando tênis, conversando com amigos enquanto bebemos ou jogamos dardos, e não amontoados como ovelhas apavoradas, pensando em bombas. Elas podem destruir o corpo (até um micróbio pode fazer isso), mas não precisam dominar nossa mente.
(C.S.Lewis. On living in an atomic age, 1948. Me deparei com a citação essa semana.)
deus
[originalmente em 06/02/2022]
Yo he tratado de creer en Dios, pero no he podido hasta ahora. Es una incapacidad mía. (Jorge Luis Borges)
¿Y dios?
Eu estava sentado no sofá em frente ao jardim, na sombra do beiral com os pés no sol, e observava meia dúzia de passarinhos que trocavam de lugar nos fios de luz da rua logo ali depois do muro da casa. A vitrola tocava Jorge Ben e encobria o barulho do mar (a uns cem metros dali). Eu ouvia e pensava na morena da música, na letra que eu nunca tinha escutado com atenção. Foi então que meu amigo argentino perguntou “¿no vas a abordar la cuestión de dios?”.
Ele não é um sujeito de meias verdades. Gosta das certezas e dos infinitos, embora não os encontre em todos os lugares. Agora escrevendo é que percebo que ele deve ter dito Dios com maiúscula. Acho que o entendo nesse ponto. Uma parte de mim gosta dos infinitos também, daquelas imagens incríveis de sujeitos pequeninos que quase somem em frente ao mar enorme. Dos abismos, das geleiras muito brancas, da noite muito escura, da solidão da lua, da dor de um tango.
Mas é só uma parte. Há uma outra parte que diz que é só por hoje, que talvez seja só isso mesmo, que as coisas se transformam, de regulares em incríveis, de mágicas em normais, que a vida fica quase que o tempo todo nos pontos intermediários, que os acontecimentos extremos ou são raros ou são ilusão. E que talvez essa desmedida seja quase sempre um erro.
Meu amigo, no entanto, não se guia por verdades parciais e amores possíveis. O fato é que ele andou lendo meus textos e perguntou sobre deus, o que me faz suspeitar de que os textos estão mais para filosofia que para memórias de viagem (como era a minha primeira intenção). “Para fins práticos, eu sou ateu”, foi o que eu disse. A frase já estava pronta, é a que uso nessas horas, mas fiz uma pequena pausa antes de falar, como se estivesse pensando. E completei improvisando “e que outros fins há?”.
Em seguida, porque meu amigo gosta de coisas bem acabadas, eu disse que sim, que ia escrever. Voltei então aos passarinhos e à morena da música, dando o assunto por encerrado.
Mas a verdade é que reconheço algo religioso em mim. Imagino que para algumas pessoas, a vida seja um fato automático. Para mim não é. Eu preciso tampar uns buracos. É aí que entra esse sentimento ao qual eu não dou nome nenhum. É só um chão inventado para cobrir o abismo, como aquele pano que cobre o buraco nos desenhos animados e permite que as pessoas passem sobre ele. O mundo não me faz muito sentido, não. Aí eu recorro a esse chão inventado a fim de parar de pensar, o que ajuda muito. Acho que é isso o que algumas pessoas chamam de deus. Tampar o buraco funciona como aceitar que tudo é meio absurdo mesmo. E, depois de aceitar, esquecer.
No intervalo entre duas músicas, o som do mar apareceu de novo. Os passarinhos continuavam trocando de lugar no fio como se estivessem em uma dança das cadeiras. A morena da música. É bonito demais aqui. “Deus não existe, mas gosta de mim”, eu ainda disse para o amigo argentino, tentando explicar um pouco mais, com o cuidado de não dar nome nem ao chão nem ao abismo.